1999 – Revista Pime nº 32 por Maria José de Deus

Revista nº 32, de março de 1999, página 38, artigo Raízes de um povo religioso, de autoria de Maria José de Deus.

Como os antepassados, os afro-descendentes manifestam uma religiosidade rica em símbolos e significados, comprometida com a causa do povo negro e expressa nas festas e celebrações.
Mais de um século depois de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, pondo fim à abolição da escravatura, poucos negros ocupam lugar de destaque na política e economia do país, mesmo formando um contigente de aproximadamente 43% da população brasileira.
Ainda se constrói uma história baseada no preconceito disfarçado e na resistência contínua por parte da comunidade negra e de alguns segmentos da sociedade, buscando modificar essa conjuntura que exclui cerca de 60 milhões de afro-descendentes.
No âmbito eclesial, algumas iniciativas nesse sentido foram tomadas a partir da década de 60, com o Concílio Vaticano II e seus desdobramentos em Medellin (1968) e Puebla (1979), quando a Igreja passa a adotar novas linhas de reflexão e atuação, questionando as causas da marginalização na América latina e fazendo uma opção preferencial pelos pobres.
“Os negros começam a se organizar quando percebem que estão sendo contemplados com essas medidas e que a Igreja latino-americana passa a identificar-se com eles”, conta o padre José Enes da igreja Nossa Senhora de Casaluce, no bairro do Brás, em São Paulo.
Daí se justificar, nas décadas seguintes, o aparecimento de vários movimentos dentro da Igreja católica – que hoje somam mais de uma dezena – voltados para a sensibilização e preservação das raízes culturais, o resgate da dívida social para com os negros e empenhados na educação dos jovens para o mercado de trabalho.
Essas reflexões sobre negritude e fé têm seu ponto alto no Encontro Nacional de Padres, Bispos e Diáconos Negros que, a cada ano, consegue reunir cerca de 600 representantes dos Agentes de Pastoral Negros (APNs), Instituto Mariama de Articulação de Padres, Bispos e Diáconos Negros (IMA), Grupo de Reflexão Negro e Indígena da Conferência dos Religiosos do Brasil (Greni), Congadas, Irmandades e até religiosos e leigos de países africanos.
Nesses encontros, entre outras conclusões, foi possível constatar que de um total de 400 bispos brasileiros, cinco são negros e de 14 mil padres, apenas 500 são afro-descendentes. Além disso, os movimentos têm buscado uma aproximação com os cultos africanos, favorecendo a inculturação e o diálogo inter-religioso, incentivados por João Paulo II. O papa é um incansável defensor do respeito e da aproximação do cristianismo com os povos e suas respectivas culturas, com atestam seus pronunciamentos na Conferência de São Domingo, durante a realização dos Sínodos e na carta apostólica Rumo ao Novo Milênio.
Outras iniciativas fora da Igreja conseguiram criar o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), em memória de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, destruído em 1694, na Serra da Barriga, Alagoas, com o intuito de despertar para o exercício da política como meio de se alcançar a cidadania, na luta pela posse da terra com a reforma agrária e o direito às terras remanescentes dos quilombos.
Contribuição histórica
Dentre os bispos que mais se envolveram com a causa do negro, encontra-se dom José Maria Pires, arcebispo-emérito da Paraíba. Ele é considerado um dos principais responsáveis, juntamente com alguns padres, pela elaboração da proposta apresentada, em Medellin, tratando da realidade do negro no Brasil.
Assim como dom Gílio Felício, recém-nomeado bispo-auxiliar de Salvador por João Paulo II, o arcebispo da Paraíba incentiva a liturgia afro, a adoção de um rito afro-brasileiro e a criação, junto à CNBB, de um secretariado próprio.
A Missa dos Quilombos e a celebração durante o Comla (Congresso Missionário Latino-Americano) chamaram a atenção para a riqueza da religiosidade de um povo, inserida na Igreja desde o tempo da escravidão e responsável pela organização dos negros escravos e seus descendentes nas Congadas, nas Irmandades e Confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de São Benedito, Santa Ifigênia e na construção de belíssimas igrejas em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, que hoje fazem parte de nosso patrimônio histórico e cultural.
Essas festas ainda podem ser vistas, enriquecendo a Igreja e fazendo parte da tradição católica. Assim como as celebrações atuais, elas retratam o gosto e estilo dos afro-descendentes que, como os antepassados, expressam uma religiosidade festiva, irmanados na defesa e preservação de seus direitos.
Celebração diferente
Nem sempre essas celebrações são compreendidas e assimiladas por fiéis e religiosos, porque agregam símbolos considerados estranhos à liturgia tradicional. “Existe um significado para a utilização do atabaque, do berimbau, para as vestes dos padres e dos trajes de um colorido vivo usado por mulheres e crianças durante as procissões da Palavra e do ofertório”, explica o padre Enes.
Segundo o padre, esse ritual expressa a universalidade dos símbolos pertencentes à cultura africana que transcende o domínio das religiões. É por isso que a missa afro não é celebrada freqüentemente, só em ocasiões especiais e preparada com zelo pelos Agentes de Pastoral Negros para o Dia Nacional da Consciência Negra e nas ordenações como a do diácono Devanil Ferreira, da Congregação dos Oblatos de São José, presidida por dom Gílio Felício, em fevereiro, na cidade de Apucarana (PR).
“É um rito católico inculturado. Não fazemos sincretismo, isto é, misturar elementos dos cultos africanos à celebração”, acrescenta o diácono, que coordena a Pastoral Afro no Santuário Santa Edwiges, no bairro do Sacomã, São Paulo, e há quatro anos vem organizando celebrações desse tipo para a comunidade e representantes de vários movimentos negros.
Durante o ofertório, por exemplo, não são mais apresentados os símbolos do sofrimento e tortura lembrados durante a Campanha da Fraternidade de 1988, cujo tema -“Ouvi o clamor desse povo” – denunciou a marginalização do negro. Agora são levadas ao altar as vitórias e perspectivas representadas num livro pelo acesso à educação ou nas atividades de um profissional liberal, assim como elementos da natureza como a terra, a água, o fogo representando as origens da vida e os frutos do trabalho do homem.
ANSEIOS DE LIBERTAÇÃO
Proibidos de prestar culto às divindades africanas e freqüentar as mesmas igrejas dos senhores, os negros resolveram fundar as Confrarias e as Irmandades do Senhor do Bonfim, de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, de Santa Ifigênia, de São Jorge, de Santo Elesbão, de Santo Antônio de Categeró, de São Gonçalo, que se expandiram pelo Brasil.
Nessas devoções foram inseridos festejos populares como a coroação do rei e da rainha congos, as cheganças e seus almirantes, capoeira e batuques, tudo incrementado com cantoria e rituais que lembravam a África. O povo bantu é considerado responsável por trazer ao Brasil às devoções a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito levadas ao Congo por missionários portugue-ses. Nessas ocasiões, podia ocorrer também uma maior aproximação entre brancos e negros que se divertiam nos folguedos, fazendo da rua um espaço democrático, ignorando – ainda que por um certo tempo – as diferenças sociais.
TUDO EM COMUM
Além do aspecto religioso, as irmandades e confrarias tinham objetivos humanitários e de fraternidade, onde todos se irmanavam na luta e defesa dos escravos, fortalecendo a religiosidade, o culto aos mortos, o desejo de ser alforriado e a consciência dos princípios de liberdade.
“Existem algumas experiências muito bonitas neste período. Os negros que conseguiam carta de alforria trabalhavam como biscateiros e ajuntavam suas economias. Na festa de Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito, eles abriam o caixa comum e resgatavam a liberdade de outros escravos. Isso demonstra um cristianismo forte, comprometido com a solidariedade”, revela o padre Enes. Também as irmandades mantinham nos terrenos próximos às igrejas pequenas casas habitadas por africanos livres, muito pobres, que chegavam a montar quitandas onde vendiam doces, geléias, frutas, legumes e hortaliças.

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