RJ/Flamengo – História de Tarsila, nascida e nascida
HISTÓRIA DE TARSILA, NASCIDA E NASCIDA
Conto finalizado (penúltimo parágrafo) citando Santo Antônio de Categeró
O texto do conto foi obtido no endereço: http://contosdosalunos.blogspot.com/2010_03_07_archive.html
São textos escritos pelos alunos da Oficina de Contos da Profª Nilza Rezende – Estação das Letras – tel.:(21)3237-3947, postados em seu blog, no endereço abaixo em 13 de março de 2.010.
(O conto apresentado tem em seu ante penúltimo parágrafo uma citação a Categeró)
Com os agradecimentos a Osman Lins, pelo título inspirado em seu Avalovara, As cidades de Capivari e Rafard, outrora, pertencentes a um mesmo município, disputam hoje o privilégio de terem sido o berço natal de Tarsila do Amaral. Lembrando essa provinciana e improdutiva querela, foi escrita esta história..
HISTÓRIA DE TARSILA, NASCIDA E NASCIDA (Literatura)
Meu grito forte ecoou pela noite. Até Nhá Vitória escutou. Isso lá na casinha dela, bem mais pra baixo. Já no final da Rua da Barra. Quase na beira do rio.
Joana, que dorme ao meu lado, acordou espantada. Que é que eu podia fazer? Tarsila apareceu pra me puxar a perna. Eu sabia que isso ia acontecer. Mas não pude deixar de me assustar.
Ela tinha prometido isso, naquele tempo em que brincávamos de princesas no Jardim de Capivari. Em torno do coreto construído por Seu Trindade, apanhávamos folhas pra fazer coroas e enfeitar nossas cabeças. Mas isso faz muitos anos. Era nos tempos do Padre Marques. Ou do Cônego Fragoso, já nem me lembro bem. Acho que foi pouco depois da Semana Santa, quando a gente estava impressionada com a Procissão do Senhor Morto. Aí começamos a brincar de enterro. E de velório. E a falar de morte. Quando é que eu ia morrer, quando é que ela ia morrer. Como é que ia ser. Se a outra ia chorar ou não ia. Fizemos um trato. Quem fosse primeiro, voltava pra puxar a perna da outra.
Na noite passada, Tarsila cumpriu a promessa. Foi ontem mesmo que Joana me disse que Tarsila tinha morrido. Dona Cininha é que ouviu na televisão. E contou pra Antônia. Que contou pra Joana.
Mas Tarsila estava longe. Acho que foi em São Paulo. Sei lá, ela vivia sempre longe. Europa. São Paulo. Bahia. Sei lá. Até no Rio de Janeiro dizem que ela morou. Dinheiro ela sempre teve. E coragem mais ainda. Mas pra Capivari ela não vinha. Há mais de dez anos. Ou de vinte. Ou de cinquenta, já parei de fazer contas há muito tempo.
Eu torcia pra que ela não viesse nunca visitar sua terra. Bastava que eu ouvisse o que diziam dela na saída da missa. Ela não precisa ouvir. Mulher sem vergonha. Tinha separado do marido. Mas já estava com outro. E ainda tinha um amante na França. As histórias cresciam. Eu calada no meu canto. Parecia que só eu gostava dela.
Também de mim, Isabel, falavam muito, quando eu era jovem. Só porque eu era largada de Anselmo. E era moça. E era sacudida. Beleza sei que nunca tive. Mas ninguém dançava o batuque bonito como eu. Nem Isolina, cinco anos mais nova. E, quando chegava o Carnaval, o pessoal da Marinha sempre me chamava para ser a Rainha do cordão de negros. E foi num cordão desses que Libânio chegou perto de mim. Libânio, que era o rei naquele ano. Libânio, aquele patricinho alto que eu já conhecia dos rodeios na Fazenda Pau-a-Pique. Libânio, que era sempre o primeiro a passar sobre as brasas da fogueira, na noite de São João.
Aos poucos, Libânio foi apertando o cerco. Que é que eu podia fazer, precisava de alguém pra me ajudar a criar os filhos. Joana e Genésio ainda pequenos. E o desgramado de Anselmo sem pagar nem um quilo de fubá pra alimentar três bocas. Quando me dei conta, já estava amigada com Libânio.
Sei que a cidade falou mal de mim, mas não dei trela. Tocava a minha vida, cuidava dos meninos, cozinhava, limpava a casa, lavava a roupa das minhas freguesas. Dona Cilica, Dona Alice Bernardino, Dona Sinhá, Dona Faustina. Lavar e passar, isso eu sabia fazer bem. Aprendi com minha mãe, a melhor engomadeira da cidade.
Ainda pequena, ajudava a pegar as trouxas de roupa para lavar, depois levava tudo de volta. O cheiro bom da roupa limpa. Que eu ia entregar na casa de Dona Belisária, a mulher mais linda de Capivari, casada com Seu Júlio Ribeiro, aquele professor que tinha uma escola na descida para a ponte do Carmo. Ou na casa de Dona Lucila Aguiar, onde eu gostava de ficar ouvindo o som do piano que vinha da sala. Depois, um presentão: Eufrásia, a cozinheira, me deixava entrar no quintal pra apanhar jabuticabas.
Minha mãe também lavava pra Dona Lídia, mãe de Tarsila. Eu gostava de ver os guardanapos de linho, as toalhas de banquete, os lindos vestidos de baile. Muitas vezes, entrava com ela na grande casa da Barão do Rio Branco. No final do corredor, Dona Marciana, a velha empregada, já meio curvada pelo reumatismo, nos entregava a trouxa. De lá eu saía contente. Ganhava sempre uma cocada, um sequilho, um tijolinho de doce de abóbora. E ficava ainda mais contente quando encontrava Tarsila. Ela me mostrava seus cavalos de pau, suas bonecas de louça, sua casinha de madeira cheia de pequenos móveis.
“Tarsila nasceu nesta casa”, disse-me um dia minha mãe. Mas isso foi muitos anos depois, quando Tarsila já tinha deixado Capivari. Estávamos voltando da festa de Santa Cruz, numa noite fria de maio. O casarão estava fechado. Como ficou por muitos anos, depois que o Doutor Juca e a família foram embora. “Tarsila nasceu aqui”, ela repetiu. “Lembro-me bem quando bati na porta, e Marciana me atendeu pedindo que eu entrasse sem fazer barulho. A criança tinha nascido naquela manhã”.
Dias depois, repeti essa história pra minha tia Quitéria. Ela disse que minha mãe devia estar maluca. Tarsila tinha nascido na Fazenda São Bernardo, pra lá da Vila Raffard. Disso ela tinha certeza, porque nesse tempo ela trabalhava cortando cana na fazenda. Era uma tarde bonita, quando, ao voltar do canavial para a vila dos colonos, mandaram avisar que Doutor Juca tinha mandado servir capilé, pinga, canjica e bolo de fubá pra todo mundo, pra festejar o nascimento da filha.
Não sei se algum dia tirei a limpo essa história. Pra mim, uma mulher como Tarsila podia muito bem ter nascido duas vezes.
Bem, pelo menos eu penso assim. Deve ser por isso que me chamam de Nhá Zabé, a maluca. Mas de maluca não tenho nada. Não sou como Dioguina. A pobre fala sozinha, não reconhece ninguém, reclama da vida o tempo todo, tem ataques no meio da rua. Mora num casebre, lá pras bandas da Raia, atrás da Igreja de São Benedito. Não fosse por Dona Olímpia, que sempre deixa lá um pratinho de comida, a coitada morria de fome.
Eu sou diferente. O pessoal estranha é porque eu vejo mais que os outros. Vejo, muitas vezes, gente que já morreu. Ainda na semana passada vi, andando de braço dado pelo Jardim, Dona Sinhá e Dona Clara, sua mãe. Depois Joana me disse que as duas já morreram há muito tempo. Mas eu vi bem as duas, saindo da casa de Doutor Mário, de-apar com o cinema, e caminhando em direção à casa de Nhonhô Ferraz.
Quase toda semana, vou à marcenaria do Soraggi, na frente da Igreja. Peço ao Zezinho, que conheço desde criança, umas aparas de madeira pra o fogão de lenha. Quando saio, muitas vezes escuto, vindo da outra esquina, o piano de Dona Lucila. Outro dia cheguei mais perto para ouvir melhor, mas quando passei em frente da casa, percebi que ela já havia terminado a valsa e fechava o piano.
Depois, Nhá Vitória andou dizendo que essa história era mentira, que a casa estava fechada e que Dona Lucila já não vivia há quarenta anos. Viva ou não, ela estava lá, tocando bonito como sempre tocou.
Não tenho culpa se os outros não vêem o que está bem à vista de todos. Mas, por causa disso, as pessoas me olham de banda. Muitas vezes percebo que me evitam. E aí, como não tenho com quem conversar, fico resmungando sozinha. O que é mais um motivo pra ser chamada de doida.
Tem aquela história: cria fama, deita na cama. Agora não tem mais jeito. Serei, para o resto da vida, Nhá Zabé, a maluca. E aí os moleques da rua ficam gritando meu nome, e me pinchando pedras. Tentando evitar esses ataques, fico atravessando a rua, de uma calçada pra outra. O que aumenta, ainda mais, minha fama. É um perereco.
Não posso me queixar da vida que Deus me deu. Criei meus cinco filhos. Dois de Anselmo, três de Libânio. Estão todos por aí, bons cristãos, tementes a Deus. Cada um na sua profissão. Carpindo rua, cortando cana, lavando roupa, enfeitando o altar da Igreja Matriz, tocando na banda do Seu Tide. Ajudando a cidade a crescer.
Esta noite durmo feliz. Na noite passada Tarsila veio me ver. Cumpriu a promessa. Tanta gente importante que ela conheceu, e foi justamente a pobre Nhá Zabé, em sua casinha na Rua da Barra, que Tarsila do Amaral, a grande pintora, se lembrou de visitar.
Está de noite outra vez. Joana ainda não voltou do trabalho, por isso comi sozinha meu viradinho de feijão. Já rezei pra Santo Elesbão e pra Santo Antônio de Categeró. Agora beijo a fita da Confraria do Rosário, como faço sempre antes de dormir.
Acabo de me lembrar de uma coisa. Isso foi há tanto tempo atrás, mas ainda está muito claro na minha cabeça. Eu tinha nove anos, Tarsila sete. Naquela conversa que tivemos no Jardim, combinamos mais uma coisa: se uma viesse visitar a outra, depois de morta, a visita teria que ser paga. E sem demora.
Esta é uma boa noite para eu procurar Tarsila. E, quem sabe, ficar de vez por lá. Acho que ela me empresta suas bonecas de louça para brincar. Tarsila, com certeza, continua bondosa. Como sempre foi.
João (Augusto- em verificação) Bastos de Mattos – 13 de março de 2010
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